domingo, 10 de janeiro de 2010

CRISTÃOS, VITÓRIA E ÉTICA




Em uma era informatizada e altamente competitiva, a vitória é almejada. Muitas vezes, a palavra vitória ganha equivalentes como sucesso (termo associado ao conceito de progresso, o qual surgiu no início da revolução industrial [1]) ou realização pessoal (por sua vez, ligada à satisfação, objetivo de vida para a sociedade hodierna, focada no prazer individual [2]). Entretanto, vitória extrapola o sucesso e a realização. Podemos elencar figuras diversas para a vitória, desde atletas em uma olimpíada até soldados voltando de uma guerra. Vitória pressupõe desafio, luta, conquista, resultados e prêmios. Há uma conexão semântica entre o substantivo vitória e o verbo vencer, como entre água e beber – em ambas as ligações, o verbo indica o usufruto do substantivo. A concepção de vitória como meta existencial é patenteada pela Literatura e visível na cultura popular, na qual, por exemplo, expressões tais como “vencer na vida” ou “ser vitorioso” assumem que há um objetivo a ser perseguido.
A busca pela vitória não consiste em uma perspectiva exclusiva do Ocidente secularizado. A Bíblia tem muito a dizer sobre vitória, em vários aspectos. Quando abrimos as páginas do Novo Testamento, notamos um conjunto de textos que retratam o cristão como alguém que vence o mundo. A frase formou a concepção de muitos cristãos protestantes e pentecostais em sua aversão ao que consideravam mundano. A compreensão do crente vencendo o mundo tornou-se metonímia da própria vida cristã, em sua trajetória de renúncia e concepção de mundo característica. Cantávamos “Fé é a vitória” nos cultos da pequena igreja que frequentei. Tal como no velho hino, a chave para se angariar a vitória espiritual, muitas vezes intangível no cotidiano, está na fé, confiança absoluta que move o cristão em sua marcha espiritual.
É bem verdade que assistimos atualmente à ascensão de um Cristianismo que enfatiza um entendimento de vitória diverso daquele tratado acima. Com o surgimento do neopentecostalismo, percebe-se que o termo vitória continua em voga; mas a vitória agora não é mais um elemento espiritual subjetivo, relacionado à fé num sistema de crenças que se opõem ao que considera mundano. Hoje a fé é um sentimento de posse, uma atitude empreendedora motivada pela palavra de ordem que líderes carismáticos proferem àqueles que buscam o sucesso avidamente. Como ressaltou certa pesquisadora:
Muitos dos que estão chegando para engrossar as estatísticas [relacionadas ao crescimento dos evangélicos] animam-se com ensinamentos de um evangelho fácil, aprendendo que seguir Jesus Cristo é andar sempre de cabeça erguida e ser um vitorioso. Afinal, ele derrotou até a morte!
Com isso em mente, segue-se a Cristo para ficar rico, pois somos filhos de um Rei, herdeiros de toda sorte de privilégios. Segui-lo é sair da miséria, é conseguir o emprego, a promoção ou então evitar o câncer, a paralisia, o desastre. Ninguém quer diminuir. Todos querem crescer e, se possível, viver uma vida hollywoodiana [3].
A fé garante bens, a fé vence as dificuldades no casamento e proporciona saúde, cumprindo a função de moeda de troca – quando a fé, materializada em sacrifícios pessoais, em geral, envolvendo a doação de bens à igreja ou oferecendo quantias financeiras em forma de pacto, cumpre sua parte, o crente sente-se confortável para exigir de Deus as bênçãos às quais julga ter direito. Possuir fé garante o sustento de uma forma de vida opulenta, pretendida pelos adoradores contemporâneos, mas alcançada na prática apenas pelos líderes religiosos bem sucedidos.
Estaria esta nova proposta de um segmento cristão fazendo justiça à matéria bíblica, na qual os cristãos (de todos os segmentos) afirmam basear sua fé? Em nome de uma suposta busca pela vitória, instituições cristãs passam pelo escrutínio da mídia e, mormente, assistimos reportagens destrincharem práticas cristãs, questionáveis aos olhos de diversos setores da sociedade secular – sem mencionar o desabono por parte de outros cristãos, igualmente indignados com o que consideram um abuso da fé.
Em certo sentido, os fatos apurados parecem indicar que muitos renomados líderes espirituais, pregoeiros do sucesso, descuidam da ética em pelo menos dois aspectos. Primeiramente, incentivam um comportamento moral raso, porque não instruem suas respectivas comunidades sobre deveres morais, mas promovem com avidez de mercado um evangelho mais preocupado em atrair o coração do que em ocupar o cérebro; a instrução bíblico-doutrinária fornecida é mínima, enquanto que a experiência pessoal místico-religiosa recebe endosso, chegando ao status velado de prova de fé. Como diz o pesquisador Paulo Romeiro: “Em muitas igrejas neopentecostais, a Bíblia perde espaço para a experiência. Ela assume um papel secundário.” [4]
O clima emocional que impera no culto não favorece à reflexão – ao contrário: propicia a aceitação da mensagem proferida, muitas vezes focada na busca pelo sucesso como um fim em si mesmo (o que é maquiado sob a afirmação de que isso seria “o propósito de Deus para o crente”).
Além de não promoverem a ética, os ministros neopentecostais não se caracterizam pelo comportamento ético na forma como exercem sua liderança eclesiástica. Constantemente, informações negativas sobre pastores, bispos e apóstolos são veiculadas pelas principais mídias; escândalos financeiros, acusações do Ministério Público, envolvimento em práticas políticas ilícitas, suposto envolvimento com o crime organizado, aquisição de vultosos patrimônios, entre outras sérias acusações, lançam dúvida sobre a conduta ética de tais líderes.
Gustavo Rocha, ex-pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, em entrevista à revista Época, declarou como desempenhava suas funções “ministeriais”, a partir de quando recebeu uma igreja para cuidar:

Fiquei tranquilo [diante do encargo] porque eu já tinha aprendido o trabalho. Ele [o Bispo Macedo] me ensinou o seguinte: como era uma igreja pequena, primeiro eu tinha de fazer um atendimento corpo a corpo, conversar com cada um dos membros da igreja, visitar a casa, participar da vida. Eu levantava toda a vida da pessoa e determinava o dízimo. E eu ia colocando na cabeça das pessoas. Elas chegavam para contar alguma coisa: “Pastor, fui viajar e bati meu carro.” Eu dizia: “senhora está sendo fiel no dízimo?”. Ela dizia que não. Então eu falava que era por isso que ela tinha batido o carro. Óbvio que não tinha nada a ver, mas era uma questão de mexer com o psicológico, para que ela pensasse que as coisas ruins aconteciam por causa de um erro dela, e não por um erro da igreja ou um erro de Deus. Eu tinha de fazer aquela pessoa acreditar que o dízimo dela era uma coisa sagrada. Noventa por cento das pessoas que vão à igreja, e isso eu ouvi do bispo Macedo, não vão para adorar a Deus. Vão para pedir, porque têm problemas no casamento, nas finanças, de saúde. Então o bispo falava: “Você chega para a pessoa e diz: Você está com problema financeiro, não está? Eu sei, eu estou vendo que sua vida financeira não está boa”. É muito fácil. Por serem pessoas humildes, elas estão mais propensas a certos problemas. [5]
No meio neopentecostal, comumente se ouve a réplica de que tais acusações são infundadas, que ocorre uma injusta perseguição semelhante a que os cristãos têm sofrido desde que surgiram no mundo, e que o próprio diabo estaria movendo uma campanha contra o “povo de Deus”. Cabem aqui algumas ressalvas: inúmeras denúncias e inquéritos parecem apresentar evidência cumulativa da culpabilidade de alguns líderes cristãos; a própria falta de transparência na gerência da parte desses dirigentes dos recursos arrecadados parece depor contra sua alegada inocência.
No que se refere à perseguição, é fato que o Cristianismo suportou dura perseguição, primeiro dos judeus, depois dos romanos e até da própria cristandade medieval; até nos dias, existem focos de perseguição a cristãos em países de maioria muçulmana, como Iraque e Paquistão, além da China comunista. Em comum, tais perseguições foram motivadas por ojeriza ao próprio credo cristão. No caso das acusações às igrejas neopentecostais, elas se enquadram no âmbito criminal, como lavagem de dinheiro, estelionatário, formação de quadrilhas, etc. Aqui nos cumpre relembrar a admoestação do apóstolo: “Se algum de vocês sofre, que não seja como assassino, ladrão, criminoso, ou como quem se intromete em negócios alheios.” (1 Pe. 4:15, NVI). O sofrimento é esperado para o cristão (v.12), mas existe diferença entre sofrer dignamente por causa da fé ou em função de estar acusado de prática contrária ao caráter cristão.
Por último, ao remeter ao diabo a causa final de todo o embaraço pelo qual passam, alguns neopentecostais legitimam suas ações, querendo nos levar a crer que Deus está com eles, e por essa razão se acham acuados pelos poderes do mal. Entretanto, deveríamos nos questionar: há evidências de que suas práticas confirmam que seguem as orientações éticas fornecidas pelo próprio Deus? Dessa forma, somos reconduzidos ao ponto inicial, onde nos indagávamos se um confronto entre a ética bíblica e a advogada por alguns segmentos do Cristianismo são concordes.
Deve-se ressaltar que a religião cristã não é, em essência, materialista ou defensora da ética utilitarista; uma das características do pensamento cristão mais solenes é justamente seu desapego ao que considera mundano, e seu repúdio a qualquer pensamento que restrinja a felicidade a uma realização temporal, efêmera e material. Antes, o Cristianismo histórico se identificou, desde cedo, com uma postura holística, a qual procura integrar a fé em diversos aspectos da vida, promovendo equilíbrio saudável entre a espera pelo fim dos tempos e a vida dinâmica em favor do melhoramento redentivo deste mundo. A ênfase recai no aspecto tanto proposicional da Palavra inspirada por Deus, a qual apresenta um caráter normativo para quem quer que se apresente como cristão, e no aspecto relacional, com o Jesus de que fala a Palavra, uma figura histórica real e atuante na vida daquele que crê.
Assim, a ética cristã não pode deixar de confrontar-se com os reclamos de Jesus, tão apropriadamente sintetizados nas palavras do escritor cristão C. S. Lewis:

Cristo diz: “Quero tudo o que é seu. Não quero uma parte de seu tempo uma parte do seu dinheiro e uma parte do seu trabalho: quero você. Não vim para atormentar o seu ser natural, vim para matá-lo. As meias medidas não me bastam. Não quero cortar um ramo aqui e outro ali; quero abater a árvore inteira. Não quero raspar, revestir ou obturar o dente; quero arrancá-lo. Entregue-me todo o ser natural, não só os desejos que lhe parecem maus, mas também os que se afiguram inocentes – o aparato inteiro. Em lugar dele, dar-lhe-ei um ser novo. Na verdade, dar-lhe-ei a mim mesmo: o que é meu se tornará seu.” [6]
Um Cristianismo que reduza a entrega a posses, além de afigurar um engodo, que explora a boa-fé alheia, é nulo, do ponto de vista da eficácia espiritual. Afinal, quem entrega um carro para sua denominação, e por este ato, se sente um vitorioso, se esquece de que a entrega requerida por Deus é de natureza muito mais radical e profunda, chegando a envolver o ser completo. Tão somente uma entrega assim cabal, levará o indivíduo e a comunidade da fé a serem a “cabeça” e não a “cauda” (Dt 28).

[1] Embora derivado do latim, o termo veio a aparecer em Língua Portuguesa apenas no século XVII. Consultar Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, RJ: Editora Lexikon Digital, 2007), 2a reimpressão da 2a edição, 638.
[2] O termo “realização” entrou na Língua Portuguesa em 1844, segundo Antônio Geraldo da Cunha, idem, 665.
[3] Marília de Camargo César, Feridos em nome de Deus (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2009), 2a impressão, 16.
[4] Paulo Romeiro, Decepcionado com a graça: esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2005), 121.
[5] Mariana Sanches, “Aprendi a extorquir o povo, depoimento de Gustavo Rocha”, Época, 21 de Setembro de 2009, 43.
[6] C. S. Lewis, Cristianismo puro e simples (São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008), 2 ed., 259.




Leia também:

Realmente, é preciso estudar!
Que cidade merece este cidadão?
Marcha para Jesus ou para a conquista do eleitorado?
O [acesso ao] céu é o limite


Nenhum comentário: