terça-feira, 21 de julho de 2009

QUANDO A GRATIDÃO É UMA AFRONTA

E ainda repercute o acidente provocado pelo ex-deputado Ribas Carli Filho. Seria muita pretensão de minha parte tentar dizer algo original, que ainda não foi dito em relação ao caso. Entretanto, os desdobramentos desse acidente nos possibilitam, sim, novas reflexões. E novas dores, pois o ex-deputado ainda continua a atropelar o bom senso, a ética e as noções de civilidade.

O novo fato: outdoors em Guarapuava, agradecendo a Deus por lhe ter poupado a vida, para que ele continue a sua “missão” aqui na Terra. O que dizer sobre isso? Será que o ex-deputado e agora assassino não percebeu que ele não poderá fazer mais nada de relevante nesta vida, que seja capaz de apagar o que já fez?

O ex-deputado, que se via e se portava como se estivesse acima da lei, agora se julga um ser iluminado por Deus, superior aos dois pobres infelizes que tiveram que morrer num acidente para que ele, Carli Filho, pudesse começar a sua missão de luz aqui na Terra. Para Deus, na lógica que fica implícita no outdoor, tudo o mais é irrelevante: as leis infringidas, as mortes trágicas, inclusive com corpos mutilados, o sofrimento sem fim dos familiares e amigos, a interrupção de sonhos e projetos. Somos todos uns tolos figurantes na caminhada de fé e espiritualidade de Carli Filho, o Iluminado que renasce em meio a corpos e leis estraçalhados.

Como defender o que é indefensável? Depoimentos de desconhecidos e conhecidos, reconstituição, provas clínicas e circunstanciais e o histórico de transgressão às leis comprovam cabalmente a culpa de Carli Filho. Muitos ficavam pensando: qual será a defesa que o cidadão irá utilizar? A resposta está aí, ilustres: apelo para o além. Deus vai servir como estratégia para a defesa deste criminoso. E sabem o que é pior? Muitos imbecis cairão neste engodo. Que grande político este Carli Filho! Que carreira grandiosa esse sujeito não poderia fazer ao lado de alguns semelhantes seus lá em Brasília, decanos da safadeza.

Carli agora vende, com grande margem de lucro, a imagem de um sujeito grato a Deus e às pessoas. Seu egocentrismo e insensibilidade, contudo, não lhe permitem imaginar quais são as orações feitas por muitos fiéis. E qual o conteúdo destas orações? Difícil escarafunchar a espiritualidade de cada um, mas creio que muitas orações dirigidas a Deus, neste caso, giram em torno do seguinte: “Deus, faça justiça nesse caso!”, “Deus, não permita a impunidade!”, “Oh meu Deus, conforta o coração destas famílias!”, “Deus, por que pessoas como esse ex-deputado sempre têm que sair lucrando na vida, mesmo fazendo o que é errado aos Seus olhos e aos olhos da justiça?”, “Deus, que as autoridades não acobertem esse criminoso!”, “Deus, por favor, mobilize a população e a imprensa para protestarem contra tudo isso que está acontecendo.”

Infelizmente, em certas situações na vida, externar gratidão chega a ser uma afronta. A atitude de Ribas Carli Filho, ao expor outdoors em Guarapuava, é absolutamente repulsiva. Como? Imagine, você, leitor destas linhas, se o Lindemberg Fernandes Alves resolvesse fazer um outdoor dizendo as mesmas coisas – “Agradeço a Deus pela vida e a todos que estão orando por mim” – justamente depois de ter assassinado a sua namorada, a Eloá Cristina, em outubro
de 2008; era capaz de o infeliz ser linchado na prisão. Seria exagerada a minha comparação? Pensando bem, creio que sim, pois Lindemberg não fez o outdoor, matou “apenas” uma pessoa num crime passional e não era deputado.

Infelizmente, estes outdoors em Guarapuava só evidenciam os tristes momentos em que vivemos neste país. Quem mata agradece pela vida, e a população assiste a tudo isso em plena apatia, ou com um leve mas estéril incômodo. E pensar que houve uma agência de publicidade que topou produzir algo assim. E pensar que houve funcionários que se dispuseram a colar esta blasfêmia. E pensar que muitos acharam tudo isso muito legal da parte do ex-deputado.
Com o passar do tempo, esta demonstração de “gratidão” de Fernando Ribas Carli Filho se tornará uma pérola da insensibilidade e da desfaçatez. Agora, se alguém puder mostrar a ele o desatino, sugiro um outro texto, para um outro outdoor: “Causei um mal irreparável. Vou pagar pelos crimes que cometi.”

Contrição é melhor do que gratidão, ao menos diante de todo este episódio.

Fábio Bettes

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