quarta-feira, 27 de agosto de 2008

DEUS CONSCIENTE OU MERO SÁBIO? parte 2

Tomemos como exemplo a seguinte sentença: “[…] É possível extrair essas linhas gerais da missão de Jesus do material contido no Novo Testamento, mas é bem mais complicado afirmar se, durante sua vida terrena, Cristo considerava ser Deus encarnado, como defende o dogma cristão, ou mesmo se ele tinha consciência plena de que sua morte na cruz serviria para redimir a humanidade.”[1]

Essa afirmação é pontuada por dois questionamentos cuja resposta é facilmente encontrada na própria narrativa bíblia; a questão é se o estudioso aceita ou não a suficiência da Revelação.

Jesus está bem consciente de Sua divindade – Ele é acusado de blasfemar (fazer-se igual a Deus) porque reivindica poder de perdoar pecados (Mt. 9:2-7); o Mestre também afirma ser superior às personagens históricas, como Jonas, Salomão e Davi (Mt. 12:41 e 42; 22:42-45). O uso extensivo do título “Filho de Deus”, chamado pela matéria de Galileu de “misterioso”, é a mais clara referência à divindade, uma vez que filiação envolve compartilhar as mesmas características, e não necessariamente descendência (isto numa cultura em que os filhos aprendiam uma profissão com os seus pais, o que certamente levava a alguém a concluir que o filho de um carpinteiro era carpinteiro, compartilhando o mesmo ofício com seu pai; logo, o Filho de Deus deverá igualmente ser divino).

O Evangelho de João registra as incisivas afirmações contendo a expressão “Eu Sou” (gr. Ego Emi). Jesus é o Pão da vida (Jo. 6:35, 41, 51), a Luz do mundo (Jo. 9:7), a Porta por onde entram as ovelhas (Jo. 10:7), o Bom Pastor (Jo. 10:10, 14), a Ressurreição e a Vida (Jo. 11:25), a Verdadeira Videira (Jo. 15:1, 5).

O uso extensivo do termo tem suas origens na Septuaginta (versão grega do Velho Testamento), que o emprega para traduzir o tetragrama hebraico YHWH, um dos nomes que Deus emprega (cf.: Êx. 3:13 e 14). O tetragrama, cuja pronúncia exata se perdeu, indica a eternidade do Ser divino. O uso que Jesus fez do equivalente grego (Ego Emi) para a expressão hebraica YHWH indica que conscientemente o Mestre Se igualava ao próprio Deus. A maior prova deste fato está no uso absoluto da expressão na frase “[…] ‘Eu lhes afirmo que antes que Abraão nascer [Abraão viveu em cc. 1.500 a.C.], Eu Sou!’” (Jo. 8:58, ênfase suprida).

O mesmo pode ser dito da consciência de Jesus do propósito de Sua morte (Mt.16:21; 20:28; Mc. 8:31 e 32; Lc. 18:31; Jo. 6:37-40; 17:2 e 3, etc.). A questão não é se o Jesus apresentado nos Evangelhos sabia ser Deus ou conhecia previamente que sua morte significaria a salvação dos que cressem; a grande questão é se aceitamos ou não os registros canônicos como autênticos e dignos de crédito.

PODE-SE CONFIAR NOS EVANGELHOS?

Ao contrário do depoimento do Padre Léo Zeno Konzen, para quem na narrativa bíblica encontramos uma mistura de “elementos históricos” com “interpretações” posteriores, feitas pela comunidade cristã [2], há pontos que favorecem a credibilidade dos evangelhos, a começar pela sua antiguidade. Afinal, os melhores estudiosos apontam que o evangelho mais antigo, escrito por Marcos, veio apenas 20 anos depois dos eventos que descreve (na década de 50 d.C); este é um tempo relativamente pequeno do ponto de vista da História. Muitos que haviam visto o Jesus histórico estavam vivos para contestar qualquer fato que fosse meramente inventado. Os discípulos sabiam disto e, mesmo assim, continuavam apelando para seus ouvintes averiguarem os eventos (cf.: At. 2:22, 36; 3:15-17; 4:8-11).
As aparentes discrepâncias de dados nos evangelhos podem ser explicadas pela diferença de ênfase que o escritor sagrado dá na mensagem, de acordo com o público que intenta alcançar com sua pregação. Os dados podem, então, ser facilmente harmonizados com um estudo cuidadoso e sem preconceitos.

Outro aspecto que torna os evangelhos críveis é o “Critério do Constrangimento”[3], ou seja, algumas coisas na vida de Jesus são tão constrangedoras que só poderiam ser incluídas por alguém que estivesse disposto a falar toda a verdade, porque não contribuem para reforçar a boa imagem de Jesus Cristo, uma vez que são informações que desafiam os padrões sociais, éticos e religiosos da época. Apresentar postulados sobre os últimos serem os primeiros, que o líder deva servir os demais, aceitar homenagens de pessoas simples e de reputação dúbia, contemplar os humildes e não os instruídos com Seus ensinamentos, beneficiar pessoas imorais e advogar uma moral que ensina a não revidar aos insultos – são essas algumas das ações de Cristo preservadas nos evangelhos que são tão escandalosas quando postas em contraste com a moral de Sua época que dificilmente seriam inventadas pelos discípulos (a menos que quisessem denegrir a imagem de seu Mestre!).[4]
Parece-nos, portanto, que a mais confiável forma de reconstruir Jesus, no sentindo de montar as peças do quebra-cabeça espalhadas pela História é recorrendo a Bíblia, que o retrata como o Deus-Salvador que Se fez homem na intenção de resgatar a Humanidade, e que, tendo ascendido ao Céu, após a Ressurreição, vive para interceder por nós (Hb. 7:25).


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RECONSTITUIÇÃO DA MORTE DE JESUS NA REVISTA ISTO É


[1] Idém, PP. 52 e 54.
[2] Idem, p. 44.
[3] Idem, p. 54.
[4] Rodrigo P. Silva, “Um desconhecido Galileu: uma abordagem histórico-científica da vida e obras de Jesus de Nazaré” (Engenheiro Coelho, SP: Imprensa Universitária Adventista de São Paulo, 2001), ver gráfico na p.45.

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